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sexta-feira, outubro 30, 2020

Foi o Zé! 

Nestor de Holanda Cavalcanti

Do escritor pernambucano Nestor de Holanda, no seu livro de crônicas “Gente Engraçada”, publicado pelas Edições de Ouro, Rio de Janeiro, em 1962.

 Zé nasceu no Dia dos Mortos. Ainda no Todos os Santos, a mãe lhe sentiu as primeiras dores, mas ele esperou pelo Finados, para vir ao mundo. A família e os vizinhos queriam Maria; nasceu Zé. Pior ainda: ia ser Maria José e foi José Maria. Um tio desavisado levou-lhe uma boneca que dizia ‘mamãe’. Zé guardou a boneca por muito tempo. Era um conservador.

Quem começou a vida assim, devia ter sido muito pacato. Mas, não. Zé mostrou quem era, logo no Finados em que completou o primeiro aniversário. Puxou a toalha da mesa e atirou no chão todos os bolos confeccionados pelas tias, para a comemoração. Quando a mãe entrou na sala e perguntou quem fizera aquilo, o pai respondeu: - Foi o Zé!

Desde então, a frase ‘Foi o Zé!’ ficou pronunciada, anos e anos seguidos. Estendeu-se pela cidade e atravessou fronteiras. Quando morreu um canário de briga, não foi o gato: foi o Zé! Começou matando passarinhos. Aos oito anos, passou a matar pombos. Aos doze, já preferia galinhas. No Finados de seus quinze anos, foi quem derrubou o peru, com uma pedrada. Tudo o que aconteceu de mal, na pequena cidade, desde que o pai pronunciou a frase pela primeira vez, foi o Zé.

Na escola apelidaram o globo de ‘América’. Por mais que a professora explicasse que aquela bola representava o mundo, os meninos chamavam a bola de ‘América’. O globo estava sempre coberto com uma flanela amarela, bordada com linhas vermelhas. No dia em que a flanela desapareceu, a professora não notou. Mas, na aula, por acaso, fez, a um Pedrinho, a clássica pergunta:

- Quem descobriu a América? E o Pedrinho, delator contumaz, respondeu, sem vacilar: - Foi o Zé!

De outra feita, arranjou um pedaço de arame e resolveu, no recreio, brincar de vacinação. Furou o braço de todos os meninos, como se os estivesse vacinando, de verdade. E o resultado foi que a estória se repetiu: quando, na aula, a professora perguntou quem havia inventado a vacina, o mesmo Pedrinho fez nova delação: - Foi o Zé!

Casou – isto é: casaram-no. No Dia de Todos os Santos, nasceu Maria José, menina loura, meiga, acomodada. Mas, já então, o descobridor da América e inventor da vacina estava preso, em outra comarca, cumprindo pena pelo crime de homicídio premeditado. Porque aquele saudoso Pedrinho apareceu baleado. O coronel, meio surdo, que o encontrou já moribundo, quis saber como foi:

- Atiraram de tocaia? O agonizante confirmou: - Pois é! Disse isso e morreu. Com a língua enrolada, já nos estertores finais, seu ‘pois é’ saiu muito parecido com o ‘foi o Zé’. E a denúncia se fez...

Não sei se esta rápida tragédia serve para mostrar aos pais que, às vezes, eles são culpados de os filhos acabarem na cadeia. O criador de nosso herói, por exemplo, foi o criador (também) da frase que o perseguiu. E tanto mal causou que, neste momento, estou recebendo carta, na qual me informam que um condenado se suicidou, no Dia de Finados: - Foi o Zé!”

Fonte: http://oficinadetextosescreviver.blogspot.com/2016/05/foi-o-ze-nestor-de-holanda.html

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